APRENDENDO COM O BARRO, 2019

“(…) a diversidade bem poderá acabar triunfando sobre a adversidade. O futuro pertence a si próprio; e não é impossível que aqueles povos que já existiam antes do Brasil terminem por sobreviver a ele.” Viveiros de Castro

Denis Rodriguez e Leonardo Remor vem realizando nos últimos anos, alguns trabalhos em colaboração com povos originários do Brasil. Nestes trabalhos, a partir de imersões em contextos, territórios e situações distantes das suas próprias, eles realizam ações e diálogos que resultam em filmes, fotografias e instalações que problematizam as oposições de conceitos tais como: arte e produto, natureza e cultura, história e memória, educação e tradição.


Em Aprendendo com o barro, instalação apresentada na 28ª edição do Programa de Exposições do CCSP, assim com em trabalhos anteriores, metodologias, conceitos e reflexões vindos da disciplina da Antropologia informam a prática artística ao mesmo tempo que são questionados através dela. Assim, o objetivo das obras não é documentar, descrever ou narrar uma prática cultural mas aprender com ela, expandi-la. Vale citar, a obra Pescadores de Ilusões, em desenvolvimento desde 2016, em que os artistas se aproximam de uma comunidade ribeirinha no estreito de Breves no Pará, interessados por uma prática corriqueira das crianças dali: recolher doações arremessadas por turistas e viajantes que passam em barcos pelo rio. Esse gesto, que pode ser remanescente de uma tradição do Brasil colônia em que os barcos atiravam oferendas às aguas para ter uma viagem segura, os artistas reinterpretam e colocam em questão em uma série de imagens. Transportada para os dias de hoje, as oferendas se transformaram em produtos de necessidade. Os artistas lidam, nesse caso, com a noção de “apropriação cultural” para questionar uma certa continuidade histórica em que colonizador e colonizado se atualizaram em turistas e ribeirinhos.


Nessa direção, Aprendendo com o barro parte de uma inquietação em relação a educação sobre a história e a memória dos índios no Brasil, sua relação primordial com a terra e a salvaguarda da cultura material dos povos originários. Há 2 anos, os artistas encontraram pela primeira vez, Kerexu Jera Poty (Terra Gera Flor), índia Mbyá, conhecida também como Antônia, na terra Nhu’u Poty em Barra do Ribeiro no Rio Grande do Sul e descobriram nela uma fonte importante de conhecimento. Antônia é uma das últimas ceramistas guaranis que vive na região Sul do Brasil, uma das
terras originárias dos Mbyá-Guarani. Com a colaboração da bióloga, artista e professora Claudia Zanatta, os artistas puderam acompanhar o processo artesanal de fabricação da cerâmica praticada na comunidade . A partir do registro cuidadoso dessa atividade, Leonardo e Denis desenvolveram um trabalho em vídeo que acabou por se ampliar numa grande ação educativa junto a escolas da zona indígena e metropolitana de Porto Alegre.


No filme, testemunhamos o fazer consciente de Antônia, os gestos são precisos sem serem apressados. Vemos a mulher retirar e manipular barro de diferentes cores e texturas em diferentes partes da encosta do rio. Cada tipo de material é específico para uma etapa do processo. Desde a coleta da argila até a queima dos objetos modelados, há uma espécie de contentamento e alegria nas maneiras de Antônia. Como é comum na produção de cultura material indígena, cada etapa segue regras precisas e um grande apuro em busca de perfeição. Alguns objetos tem utilidade na lida do dia a dia, como potes e panelas, outros cumprem funções ritualística, como o cachimbo (penteguá), mas todos devem ser belos para poder se comunicar com o sagrado. Além de Antônia, que parece ser uma líder espiritual de sua comunidade, outros parentes – sua mãe, sua irmã e os sobrinhos – se reúnem para modelar os cachimbos e deixar queimar nas margens da fogueira. A atividade é coletiva e o conhecimento é passado para os mais jovens, que participam também, perpetuando a experiência e ligando passado, presente e futuro.


Essa e outras estórias, que estão vivas, parecem muito distantes das escolas. Nosso aprendizado sobre o território e o patrimônio não costuma passar pelos nossos índios. É, neste aspecto, neste dado essencial de nossa formação como povo, como brasileiros, que a obra em questão toca. Os artistas lembram que “em nosso país, a terra é muita, mas para poucos. Ela sempre foi dos índios mas agora não mais para eles.” Aprendendo com o barro opera no presente e na direção oposta das narrativas que encerram o índio em um tempo passado, idealizado. O que está em evidência aqui é a percepção de uma consciência histórica em que as comunidades indígenas são sujeitos, em resistência, em plena experiência de suas práticas culturais, de suas escolhas, e não apenas vítimas. E essa percepção somente é nova pra nós, brancos, os índios já sabiam disso. Pode ter certeza, aqui não estamos ensinando, mas aprendendo.

Camila Bechelany

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